A Traveler's Needs / Yeohaengjaui pilyo (Hong Sang-soo)
Se a francesa errante sempre se mostra angustiada quando seus interlocutores recorrem a linguagem musical, deve ser porque o autoencaminhamento deles a essa esfera de arranjos instrumentais lhe desarma seu método pedagógico, confrontando-a com a hipótese de que não haveria expressão sentimental destituída de composição estrutural. Para Hong, as situações comunicacionais tendem a comédia de embaraço justamente porque todo sentimento há de ser mediado por sua formalização expressiva, o que vai se referir mais a colocação das coisas do que a sua essência. Como bem notou meu amigo Vinícius Romero, em contraste com as interpretações musicais mambembes que os atores oferecem diegeticamente, o filme se fecha com uma gravação profissional de Liszt — uma espécie de “volta olímpica” da organização estrutural; o controle da linguagem como abertura ao lirismo (seus eventos, sua ventura).
Eat the Night (Caroline Poggi & Jonathan Vinel)
os derradeiros logs do animal social / a ser desterrado da topografia de seus /pertencimentos fadados a desvanecer / quando forem desligados os servidores / que lhe hospedam as referências afetivas / cada apego nosso já traz configurada em si / a eventualidade do próprio evento de extinção
Maria (Jessica Palud)
Da categoria “filmes que existem para cumprir um encargo”. No caso, esse encargo é filmar um momento. Refilmá-lo, de certa maneira, considerando que esse momento se passou diante das câmeras. Reinscrevê-lo, pois, na história do cinema sob outra ótica. Esse momento está na metade do filme, quase que precisamente a meio, organizando-o retoricamente: como se tudo que o precedesse levasse a ele e tudo que o sucedesse lhe fosse consequência.
A questão que essa escolha narrativa nos coloca é existencial: pode uma vida ser resumida a um momento decisivo? Quando avaliamos a trajetória de alguém neste plano de encarnação, será possível identificar um ponto de inflexão que de tal modo lhe terá selado o destino? Uma vez ocorrido esse momento decisivo, em que medida seria viável contrariá-lo? — i.e., escapar desse momento e da pessoa que o momento criou. São questões de obituarista que se entrepõe em boa parte dos esforços de biografização narrativa — essa coisa de converter uma vida em história — quando eles precisam fazer suas escolhas sobre quais informações dramatizar.
A propósito, outro momento decisivo na vida de Maria se passa fora de quadro: a primeira vez que ela experimentou heroína. Palud busca estabelecer uma relação consequencial entre o estupro e a droga, mas evita filmá-la com a seringa na veia, contornando o aspecto gráfico de um segundo momento, diferentemente de como procedera no enquadramento do primeiro. É uma escolha política, mas também uma escolha que impede a personagem de existir além da violência sexual, como que lhe interditando a representação do arbítrio mesmo em se tratando do curso clamorosamente pessoal da autodestruição, com sua recusa do social como forma de afirmar a autonomia do “eu” pela via porventura torta da inconciliação.
Quem foi Maria? Uma atriz, uma vítima, uma junkie? Novamente, questões de obituarista — que momento decisivo vai constituir a manchete? Sua perspectivação enquanto figura trágica, observe-se, é um movimento moralista, no sentido de que resultou de um juízo moral sobre os acontecimentos em questão. No fim das contas, é a essa circunstância que somos expostos: a de que ao legado de uma vida resta o parecer do moralismo que estrutura a ótica sobre ela — o que se dá sob a égide de critérios valorativos flutuantes. Mas isso só concerne à vida em sua faculdade de ser interpretada; quanto a vida em sua matéria, aqui só nos é oferecido que tanto a destruição quanto a autodestruição podem ser, ou talvez sejam, vias de mão única.
100 Seasons / 100 årstider (Giovanni Bucchieri)
Twink death e outras síndromes. Que vínculo pode haver entre duas pessoas ora distanciadas que compartilham um arquivo audiovisual de momentos juntos senão esse embaraçoso estado de conhecidos entre a intimidade e o estranhamento? Sendo assim, as imagens de duas ou três décadas atrás conferem gravidade ímpar à tonalidade estrambólica do experimento. Apartados primeiro pelo tempo e depois pela ficção acionada para dar conta de sujeitos sobrecarregados por si mesmos. Não há nada mais inclemente no horizonte de uma relação interpessoal do que o desaparecimento de seus futuros compartilhados.