#2407: direct action; the adults; animal; vampire humaniste...
Direct Action (Guillaume Cailleau & Ben Russell)
A primeira parte é incrível. Já a segunda não se furta a redundância. Como não raro é o caso com obras de longuíssima duração desde que se normalizou discursivamente que qualquer aspecto mais exaustivo em sua execução é justificável como de ordem conceitual, o que dá margem para muito filme ser autoindulgente com relação a própria estagnação no que se refere a capacidade de ir propondo construtivamente imagens ao longo da metragem. Mas, por exemplo, voltemos a Jeanne Dielman e o totem que virou: sua chave era o movimento circular. A composição estrutural importa no manejo da temporalidade fílmica. Eu não quero falar “coesão”, mas um cuidado devido — um eixo, algo entre a modulação e o sentido, em última instância um ritmo. Ritmo, pois, logo o que aqui se perde logo após a intermission.
O documentário sobre o coletivo autonomista é aqui menos um registro dedicado a ação direta em termos organizacionais do que uma reflexão sobre o cinema direto em termos estéticos. O gesto político de Cailleau & Russell é aderir a outra economia da temporalidade, outra economia da observação — o que, por vezes, chega a se dar majestosamente. A ação “direta” são recortes de observação oferecidos a apreensão do nosso olhar: imagens sem nota de rodapé, diretamente de sua dimensão material para a câmera e da tecnologia de projeção para o espectador. Somos expostos ao ritmo interno das atividades rotineiras de um grupo que visa a comunalidade autoestruturada. E a representação dessa práxis de autossuficiência traz à tona não só a nossa eventual distância dos processos de produção que nos moldam o mundo ao redor, mas também a alienação do olhar enquanto exercício potencialmente apartado dos processos mais improdutivos de observação do cotidiano circundante.
Por fim, ainda há espaço para um último elogio: aqui se encontra um dos mais incríveis planos de drone do cinema recente, se não o mais: uma visão embasbacante do ponto de vista sendo alçado à altura das nuvens. O que muda na perspectiva quando sai da terra e vai ao ar? Bem, se lá embaixo acompanhávamos um projeto idealista em busca de sua sustentabilidade, de cima logo podemos constatar, conforme o ângulo se reconfigura, de que maneira a terra é dividida, i.e., com os terrenos todos demarcados e as fronteiras claríssimas entre os domínios vizinhos. E nesse plano se encerra a primeira parte. O resto, pois, fica sendo o resto.
The Adults (Dustin Guy Defa)
Na base de tudo está a concepção do adulto como alguém responsável por administrar o próprio tempo entre os ímpetos de sua vontade e os encargos de sua consciência. Quanto a isso, assistimos a repercussão de dois eixos dessa gestão temporal na posição interpessoal do sujeito: o vulnerável equilíbrio de suas relações afetivas contra a erosão da temporalidade e da distância; e o comportamento compulsivo incitado pelos cassinos de dopamina (figurados ou literais, como no caso) sempre a postos para lhe oferecer alguma espécie de validação. Mas o filme contorna o moralismo mais fácil que seria representá-los como esferas necessariamente inconciliáveis. O personagem do Michael Cera nunca chega a “estragar tudo” com a tentativa de compatibilizá-las na programação. Seu problema é que do jogo ele só obtém o imediatismo de gratificações vaidosas que logo se esvaem, enquanto o âmbito do carinho fraternal lhe está permeado pela essência espinhosa de todo apego interpessoal que é a sua inconclusividade — pois afeto não é matéria que se resolva e sim vínculo que se resguarda.
Aqui retratada está a inclemente intimidade dos velhos conhecidos que sobreviveram ao desaparecimento de um passado compartilhado a ponto de presenciar também a dissipação de seus futuros mais bem polidos. Por um lado, a sina da reaproximação é remediar a reserva gerada pelo afastamento — inclusive o rancor eventualmente estimulado pela ferida narcísica de quem suspeita não ser mais suportado pela antiga companhia —; só que por outro, também se dá a ver a robustez da dinâmica cimentada na comunicação singular de velhos conhecidos, quase uma linguagem secreta na medida em que abrasivamente desconsidera os demais. São muito comoventes, nesse sentido, as performances de Hannah Gross e Michael Cera (além do mais, dois expoentes de duas ideias não exatamente conciliáveis de “indie” norte-americano) no papel dos irmãos que reassumem uma intimidade extraviada através de miradas cogitativas ou entonações provocativas. Em especial na sequência da festa final, onde tudo se culmina e a modalidade de consolo desencontrado com que eles se afligem descobre a própria catarse.
Animal (Sofia Exarchou)
Preciso recorrer a um termo cunhado neste mesmo espaço: Easyjet realism (vide How to Have Sex, Aftersun & Rien à foutre), esse gênero singularmente europeu e que tem aflorado nessa fase do processo de integração continental em que, após ter sido cimentado fisicamente, ele perde sua sustentabilidade ideológica junto aos anseios da baixa classe média. No caso, a ideologia do Easyjet realism é o realismo econômico — um estágio da articulação discursiva que escapa à revolta e à desilusão, como que refém da própria resignação. É um cinema cujo olhar se volta ao mal-estar da consciência que vai decifrando os termos de sua mobilidade, os limites de sua mobilidade mesmo em lugares de deslocamento a princípio almejável. E o que essa conscientização traz à tona sobre si é um horizonte imaginativo relegado à segmentação dos espaços de experiência que seccionam a recreação das classes sociais.
Exarchou busca expor um dos princípios organizacionais do nosso convívio enquanto espécie: espaços segmentados para diferentes fins e suas respectivas economias de serviços. Com o serviço mediando o convívio, além de navegar entre o ser e suas performances, aos indivíduos caberá ainda discernir entre as sensações e suas codificações. Como se sabe, este mundo é estruturado cenicamente; logo, há de se tentar coreografar inclusive as emoções que emergirão nele. Este estímulo é o divertimento ou apenas sua designação? Confusão essa que desequilibra animicamente quem perde o tino para distinguir a emoção de sua coreografia — de seu postulado cênico, espacialmente segmentado relativamente ao de outras sensações.
E daí que o horizonte da vulgaridade não seja tanto o baixo entretenimento em si, mas o que nele fica exposto das mecânicas com que se gira a economia na tentativa de induzir emoções — é o desengano dum grito de “beautiful” desassociado da capacidade de equilibrá-lo diante da vistosa paisagem onde o mais desedificante dos sexos não saciará nem o mais reles desejo; é a dissonância entre os estímulos e as associações semânticas que gostaríamos de promover a partir deles em um processo de introspecção a ser evitado. Eu estou bem familiarizado com o setor da cinefilia que desconfia a priori desse tipo de mise-en-scène duplamente punitiva (aos personagens e aos espectadores), mas às vezes é preciso reconsiderar quem porventura estaria tomando mais de barato a brutalidade dos comportamentos e de sua organização social.
Vampire humaniste cherche suicidaire consentant (Ariane Louis-Seize)
O amor nos tempos do consumo consciente. A premissa funciona como alegoria para o posicionamento do indivíduo diante da cadeira produtiva que sustenta suas necessidades: eis uma vampira que precisa beber sangue humano para sobreviver, mas reluta em caçar e matar ela mesma e daí fica dependente da predação dos familiares para receber sua alimentação. Ou melhor colocando, a alegoria diz respeito aos dilemas morais de quem está muito próxima da base da cadeia produtiva e não tem a opção de recorrer à conveniência espiritual da alienação sobre as etapas do sistema de distribuição que leva o alimento a sua boca. O consumo amoral há de ser a diretriz de todos os organismos, o instinto de todas as espécies? E no decurso dessa comédia romântica ainda se perscruta um parecer sobre o alicerce das estruturas sociais: ao se retratar a hipersensibilidade como atributo antitético à elevação hierárquica que advém de um reconhecimento comunal nos termos de seu respectivo sistema de honra — disposição como que estruturalmente baseada na desconsideração dos indivíduos apartados dela.