Chime (Kiyoshi Kurosawa)
Das facetas psicossomáticas que o horror pode assumir: uma força amorfa; uma reação em cadeia; um estímulo sensorial; uma impressão obsessiva; uma manifestação do absurdo; uma impregnação autofágica. E da monstruosidade máxima que é a conflagração da violência fora de qualquer lógica psicologizante, sociologizante ou sequer consequencial.
Revolution+1 (Masao Adachi)
Dentre as principais críticas organizacionais que se pode fazer ao conceito de política estatal está a da distância que se estabelece — porventura irremediavelmente — entre, de um lado, as posições ligadas a tomada de poder e, de outro, aqueles que são afetados pelas repercussões cotidianas dos processos de decisão governamental — a tal da “população” , cuja propriedade teórica, especulativa ou idealizada o deixa de ser em suas individualidades imprevistas, i.e., as vidas de cada cidadão —, o que torna as democracias representativas disfuncionais na medida em que os representantes se alienam dos representados e vice-versa (vulgarizando, claro).
Eis, então, a última delinquência cinematográfica Masao Adachi: ao reencenar o atentado à vida do ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe sob a ótica de seu assassino, biografando-o sentimentalmente — a política do personagem é sua frustração, seu ressentimento e sua raiva: esse é o estado da ideologia em nosso momento histórico —, o que ele busca articular aqui é a perspectiva desse encontro estruturalmente adiado entre os polos da dimensão governativa. E daí, delinquência é assumir outro horizonte para a enunciação política que não o do consenso midiático afeito ao poder, se voltando contra as boas-maneiras do mesmo ao representar Abe como agente imputável às consequências que causa.
O aspecto de bomba caseira em formato fílmico que a coisa toma é marcante sobretudo pela recusa de Adachi em remediar o desalento de Tetsuya Yamagami, o assassino, seja estilístico ou existencialmente. Sendo essa recusa em remediar o cerne do seu posicionamento político. Quando um indivíduo se vinga do coletivo que o circunda, é a partir da narrativização do ato que ele se tornará expressão de heroísmo ou de vilania, e isso, por sua vez, será decidido na alçada das justificativas de cada segmento social. O filme nos faz lembrar que um indivíduo sempre se vingará do coletivo mirando em outros indivíduos. E é isso que os tribunais julgam, cientes do cinismo ou não: o atentado à luz de seus respectivos alvos. Se o suicídio é a única questão filosófica, a única questão jurídica então há de ser “Deveria ter empatia?”.
The Vanishing Soldier / החייל הנעלם (Dani Rosenberg)
À essa altura, é de se imaginar que uma narrativa sobre um jovem soldado que deserda do exército israelense não encontre a maior boa vontade por aí, quanto mais um filme que não busque explicitar seus melhores posicionamentos humanistas de modo patentemente literal. Contudo, sua articulação interna também não é estranha ao moralismo: trata-se de uma fábula sobre a inescapabilidade do comprometimento moral de cada indivíduo relativamente às redes causais de opressão que sua coletividade política estiver estruturalmente implicada. O negócio é que, para Rosenberg, o drama não se constitui da moral de um ato — no caso: debandar da guerra, recusar o serviço a nacionalidade — e sim da dramatização de sua logística.
O que estará expresso quando alguém foge? Em primeiro lugar, a fuga se apresenta como atividade cinética, e depois, como distúrbio na condução expectável do dia a dia. Em tese, o ato de fugir manifesta o desequilíbrio na viabilidade de uma normalidade comportamental; é a incorporação do anômalo sobre si mesmo em detrimento de uma sustentabilidade precária do próprio cotidiano. Mas, na prática, atos voluntariosos acabam representando mais da vontade de sua iniciativa do que do avanço de sua concretização. Por fim, ressalte-se uma questão de enquadramento: Rosenberg recusa os mitos associados a paisagem evocativa dos primórdios da civilização, que sugeriria um estado de guerra milenar entre as partes no deserto levantino, e leva o conflito Israel-Palestina aos bairros bacanas de Tel Aviv, assim retratando o que nada mais é do que uma sociedade moderna compartimentalizando o acúmulo da violência.
Critical Zone / Mantagheye bohrani (Ali Ahmadzadeh)
Para a simbologia do cinema iraniano pós-revolucionário, a ambiência do carro — tão caro não só à estetização da vivência no período como à práxis cênica de uma expressão dissidente (vide Kiarostami ou Panahi) — configura a perspectiva de um espaço privado que possa vir a divergir dos ditames inclusive atmosféricos de um espaço público paralelamente regulado em excesso, com isso estabelecendo uma relação dialética entre o interior (onde será dramatizada a mobilidade acessível aos personagens) e o exterior (i.e., o espectro da normatividade estatal) da viatura, em cuja representação ainda se exprime figurativamente — enquanto retrato de um veículo em movimento — a mobilização mesma de uma consciência discursiva.
Pois partindo dessa tradição, Ahmadzadeh busca (como se diz) ressignifica-la: e assim o faz ao distinguir a consciência discursiva aqui posta em circulação por meio de seu torpor, isto é, não mais abordando-a como consciência imersa em dilemas existenciais ou políticos, mas sim uma consciência que já terá metabolizado sua condição de impotência, refugiando-se então no horizonte da alteração de consciência como estratégia de desafogo ideológico. À vista disso, é a figura de proa do traficante — curandeiro, arauto ou mártir da secularização — a ser alçada ao posto de sustentáculo anímico da modernidade farmacodinâmica que aqui vemos se abater sobre seus sujeitos mal resolvidos com as expectativas de um aburguesamento desalentado.
Mas certo bálsamo ainda se pode entrever no decurso daquelas confabulações clandestinas, certo lirismo associável à ideia de confabulações clandestinas enredando-se na contramão dos consensos e dos tabus que uma comunidade imaginada, ao consolidar-se e daí administrar-se, “autoimpõe” à revelia de cada parte individual — a sina do compartilhamento nacional. Com a mobilidade dramatúrgica reduzida à claustrofobia encenatória, é ao som que o filme recorre para dimensionar uma esfera de percepção como que furtiva à normatização — o sensório em meio uma cadeia de estímulos não-emancipatórios.
Black Tea (Abderrahmane Sissako)
No fazer artístico, há quem defenda que a maturidade leva à depuração do estilo e é nesses termos que muitos articulam seu fascínio com a ideia de “produção tardia”. Mas a raiz dessa singularidade também pode ser entendida de outra maneira: o que essas obras porventura dão a ver é o ressurgimento de uma outra gama de influências que acabam transparecendo em sua própria composição de modo um tanto alheio às convenções e às tendências de seu respectivo ecossistema cultural contemporâneo, levando a uma excentricidade contingencial.
Pois vejamos: esse novo do Sissako — estilisticamente condicionado por um regime de culturalização lírica que rege o seu pictorialismo e a sua dramatização — remete ao gosto do “circuito de arte” de meados da década de 1990, como que nos redirecionando a um universo desprendido das referências mais prestigiadas à concepção do “cinema de autor” exportável pós-virada do milênio (vide Denis, Apichatpong, Martel, Dardennes). E o que isso implica? Bem, no caso de Sissako, que o parâmetro estilístico é outro e seus expedientes de estetização do mundo visam torná-lo antes contemplável do que propriamente experienciável. Ele apela a um humanismo de ordem testemunhal, cujo intuito é nos oferecer uma “janela cultural”.
Sissako é tido por alguns autores como um cineasta africano algo ocidentalizado, seja em razão de suas autoproclamadas referências artísticas ou por trabalhar do exílio europeu, onde estudou (União Soviética) e permaneceu vivendo (França). Seu enquadramento da condição do africano sempre presume um lado de fora do continente, à medida que todos os seus filmes partem de uma perspectivação geopolítica do lugar de um ser-no-mundo. Aqui ele se volta às relações do oeste da África — e o efeito da subalternidade econômica sobre seus habitantes — com a China, tal como antes já escrutinara os vínculos da região com as forças exógenas do Ocidente, do Bloco Soviético ou do Islã.
Para um cineasta que sempre foi marcadamente político, não se nota muito de atinado em sua articulação sobre a “nova rota da seda”, então o charme da coisa é mesmo seu anacronismo (o entendimento entre culturas mediado pela beleza das mulheres, coisas assim). Curiosamente, o clichê imagético do segmento rodado em Cabo Verde me parece mais constrangedor do que toda a fantasia orientalista — a qual, na falta de maior distinção acerca das atualidades que tangencia, ainda se deixa carregar pela aprazível cadência melodramática aqui direcionada ao estabelecimento cênico de uma ambiência sublimável em sua comunalidade respirável.