La bête (Bertrand Bonello)
Uma releitura da novela de Henry James que reconsidera seu estudo sobre a inação em forma de bailado épico entre os estímulos que fariam influenciar a motricidade humana, sondando as origens do exercício subjetivo sob o prisma de uma mesma comoção basilar aos processos do inconsciente: o choque entre as forças mobilizadoras do temor (quer dizer, uma angústia ante a iminência da solidão) e do amor (ou seja, a esperança na substância de um encontro).
A obra de James tratava de dois personagens que deixam estagnar as potencialidades de sua relação devido a pressentimentos agourentos sobre o futuro, o que Bonello utiliza como ponto de partida para pôr em causa a sina psicológica de uma espécie cujos anseios balouçam entre o idealismo de uma vivência sem atrito e o aguardo por qualquer experiência extraordinária. A intervenção sobre o material original consiste em abrir o encontro à variação: e se essas duas almas estiverem destinadas a convergir sob diferentes contextos, a eles haverá uma rota enfim consumável no sentido do amor, a ser cumprida com modelos mais eficientes dos próprios?
Acompanhamos os reencontros não só reencarnarem-se como ainda serem imbricados nas circunstâncias psicossociais da espécie obcecada com seu autodesenvolvimento ora coletivo ora individual; espécie que eventualmente veremos rendida a uma promessa de coordenação dos sentimentos, assente na otimização cirúrgica de uma dada presença rumo à reificação de si mesma: o custo da estabilização do ego — pela perspectiva de domesticação da neurose em favor de uma produtividade inclusive afetiva — há de ser a esterilização emocional? Afinal, a perpetuação do amor, quando encarada em termos de eficiência comportamental, pode deixar aos indivíduos outra aspiração metodológica senão a de subjugar suas reações emocionais ao domínio da impassibilidade? Portanto, a “cirurgia emocional” se firma como oportunidade para renegar forças abismais do naipe de intuições capciosas ou suas subsequentes compensações autorreflexivas, responsáveis por sobrecarregar o sujeito com os contratempos da complexificação sentimental.
Quanto a sensação de insuficiência existencial que se espreita na conduta do quase casal, os notamos sintomaticamente desnorteados pela desconexão com qualquer noção de “absoluto” — a verdade plena, esfera onde todos os planos de realidade confluiriam —, o que lhes falta como suporte para interpretar o sentido de uma vida que idealizam encaixável entre seus fins e seus meios. Sendo assim, pois, que a disfunção semântica acomete a narrativização de uma ilusão biográfica no seio da própria intimidade. Cada corpo uma boneca receptiva a projeções — valorativas, fabulares ou impressionistas — da psique.
E conforme o cortejo de Seydoux e MacKay gira em falso sobre a ciranda de suas expressões inconcludentes, ainda somos confrontados com um universo reduzido a reincidências de uma mesma binaridade, como se acionando um tipo de determinismo afetivo enquanto paradigma performático. Mas, ao fim e ao cabo, esse tal universo estará contido na dupla ou na unidade?
Bem, como o visionamento aqui nos faz suspeitar que as ligações interpessoais vacilam sob o espectro de um desacordo na seara das expectativas compartilhadas, a cada um só restaria sua percepção sobre estar-no-mundo em meio ao convívio circundante — o valor categórico da vida sendo a sensibilidade que uma pessoa desenvolve ao longo da apreensão que somente ela poderia ter do curso no sentido do próprio desaparecimento. E daí se imprime um derradeiro, consagrado, expectado plano cinematográfico: Léa Seydoux, signo da aparência de si mesma, emite seu pranto modulado para a acepção do desespero de cada um.
L’Empire (Bruno Dumont)
Para além da mera vulgaridade autoral a que isso tem sido reduzido, o experimento me lembrou algo como as adaptações literárias que Pasolini realizou sobre textos clássicos do sagrado ou profano — mesclando atores profissionais e não-profissionais, em procedimentos de territorialização e corporificação iconoclástica de um dado cânone fabular, se utilizando da subversão de técnicas neorrealistas como forma de mediação estética entre os processos de 1) desfamiliarização materialista e de 2) reprodução iconográfica de uma história consagrada.
Os artifícios formais que Dumont emprega aqui são de teor congênere. Mas à medida que a ideia de texto relevante ao horizonte do imaginário popular terá se afastado dos clássicos e já competiria à tradição de Star Wars e seus continuadores, a estirpe mitológica sobre a qual ele se debruçará a fim de tratar desse tal horizonte do imaginário popular é a da fantasia espacial — ora ambientada no interior da França.
Dumont ainda recorre ao que se pode chamar de Verfremdungseffekt brechtiano — i.e., a operação que consiste em fazer as coisas tornarem-se estranhas — ao encenar sua fantasia espacial sem os meios para impor o faz-de-conta plasticamente, promovendo estranhamento ao alhear-se da matéria ornamental associada ao espetáculo do entretenimento. Seu gesto visa a reterritorialização e a recorporificação dos códigos dos épicos de fantasia e ficção científica, atualmente entendidos como “cinema popular” por excelência, no limiar do próprio nonsense. Sob a dissonância da ambiência cênico-existencial que o sentido quimérico faria aplacar; sob a dicotomia entre o conceito e a visão, sob a dialética entre a ideia e sua substancialização.
Na esfera dos corpos, pois, defronta-se a feérica Anamaria Vartolomei — dotada da beleza convencional, uns dirão “clássica”, de quem acaba empregue pela Chanel — com a aparência, digamos, mais intencionalmente “rústica” dos seus companheiros de cena oriundos da região; além do que, ainda há o ruído que é assistir caras conhecidas como Fabrice Luchini, Camille Cottin e Lyna Khoudri trajando fantasias escalafobéticas. Ao passo que, no âmbito territorial, enquadram-se realizações da arquitetura eclesiástica europeia como tecnologia alienígena em contraposição a paisagem bruta do interior do continente no que ela tem de pastoral ou vulgar.
No cerne da encenação, a questão da representação de um povo justaposta à representação de sua mitologia: o que põe Dumont em afinidade não só com Pasolini, mas uma série de nomes que se lançaram à reflexão sobre os cursos de conciliação e inconciliação cênica entre a esfera da tradição sociocultural e a dimensão material da modernidade acessível ao cinematógrafo, à exemplo de Manoel de Oliveira e outros. E daí, no final das contas, frente às ideias e frente às visões, encontrável diante de nós será o espólio das operações de autoestetização da espécie: essa nossa espécie de criaturas entregues a fabulação e seus contos de perpetuação moral.
L'île rouge (Robin Campillo)
É uma experiência que sempre pode ser curiosa a de enfim assistir aos filmes que muito evidentemente foram recusados por Cannes, mesmo que assinados por nomes com algum nível de notoriedade, e que a partir dessa não-exibição na maior das vitrines também foram sendo solenemente ignorados pela cultura cinéfila. Ocorre até com marcas presumivelmente mais apelativas como um Sorrentino ou um Dolan: lembram do ano de Loro e The Death & Life of John F. Donovan? Não que eu os tenha visto, mas da mesma temporada eu cheguei a ver Sunset, o filme seguinte do sujeito que tinha feito Son of Saul, cujo hype se dissipou logo que a seleção para Cannes não veio. Nesse mercado, a exposição do lojista é claramente mais decisiva do que a curiosidade do público — de atenção pouco constante e de iniciativa pouco aplicada. Vejam o caso do Campillo, com seu belo BPM quase ia ganhando a Palma de Ouro (era o preferido do Almodóvar, presidente do júri naquele ano, mas, diz-se, o Will Smith teria vetado sua premiação); só que quando é para colher os louros (a fidelização de sua autoria em relação ao meio com suporte no quase que mandatório engrandecimento da ambição para o projeto seguinte), ninguém se importa mais (eis que relegado a competição de San Sebastián).
Não que eu esteja sugerindo o selo de injustiçado a L'île rouge. A gente até vai a esse filmes esquecidos, menosprezados ou rejeitados à procura de algo excêntrico, porém às vezes a coisa é só inepta mesma. Eu nem ia escrever sobre, acho enfadonho, mas parafraseando o Bonde da Stronda: se não for eu a o fazer, quem? Rola um movimento aqui que me parece emblemático de certo estado das coisas, então vale o registro. Ao longo de 85% da metragem, a encenação está voltada à memorialização do cotidiano de uma base militar francesa em Madagascar no princípios dos anos 1970 (remetendo à infância do cineasta nesse contexto), sob a ótica de um menino que observa sua família e outras relações próximas a ele ou a seus pais, matizada por tons crepusculares do que o espectador contemporâneo tem ciência de ser o “paraíso perdido” dos europeus em África. Mas com o filme já quase se encerrando, o protagonismo é invertido e a câmera passa a acompanhar os personagens malgaxes — antes narrativamente subalternos — enquanto eles demonstram se conscientizar da própria luta pela emancipação política.
Com isso, Campillo quer tirar dos franceses o protagonismo de suas próprias reminiscências coloniais — desestruturando a estabilidade do ponto de vista europeu em sua própria tradição de ficções ambientadas sobre imaginários ou contextos oriundos da política imperialista. Seu movimento em direção ao olhar malgaxe — a subjetividade do outro colonial —, contudo, se dá de maneira brusca, entre a exposição de discursos simplórios ou protocolares, por meio de cenas ocas ou automatizadas. O lugar do outro continua a ter sua funcionalidade pautada pela narrativização da consciência europeia, para quem a adesão a ideia de descolonização tornou-se um ativo a sua autodeclaração. E assim a emancipação do outro é encenada sobre imagens quase fetichísticas da conscientização alheia, pois desobrigadas com seus antes ou depois — sendo posto em cena menos um sentido de ação coletiva do que a benevolência distanciada de uma consciência autoindulgente com relação a própria faculdade para deixar enquadrar.
À mon seul désir (Lucie Borleteau)
A coisa corresponde àquele gênero de reperspectivação feminista do trabalho sexual que busca encará-lo como uma espécie de subterfúgio cínico para navegar a economia capitalista (o que costuma vir da Europa ocidental, em particular). O esquema é previsível e se dedica à contraposição entre, de um lado, as vantagens da gratificação monetária imediata e uma ideia de sororidade instintiva das trabalhadoras, e, do outro, os riscos e os estigmas de sua condição marginal em meio a comportamentos masculinos do predatório ao simplesmente patético. Em suma, ficamos a acompanhar a dramatização de uma discursividade, o que sempre arrisca se dar de maneira protocolar caso esse processo venha a estar alheio à própria encenação.
No caso, o cerne dessa encenação diz respeito às forças de atração do dinheiro e do desejo — i.e., tanto o desejar quanto o ser desejado — operando paralelamente em detrimento de outras normas sociais, juízos morais ou instintos de autopreservação. Por conseguinte, aquela mesma história: a vida é uma série de performances e cada performance tem um caráter transacional, assim se estabelecem as relações e as expectativas das pessoas sobre elas. Acontece que, para além do trabalho de encenação, a comoção dramática correspondente a isso ainda depende da expressividade das atuações em sua dimensão mais primordial: a natureza do carisma.
A natureza do carisma: o fascínio que ele exerce por conta de sua raiz libidinal, a qual deriva da faculdade de se deixar olhar, ou seja, uma modalidade performática do ser enquanto estar, em uma espécie de confecção transmissível do intangível, o que não escapa à codificação dos sentimentos, mas cujos termos também não chegam a ser propriamente codificáveis. Isso para dizer: Louise Chevillotte, dona do palco que espacializa no olhar de outrem.
Você escrever sobre me fez finalmente sentar e assistir o L’Ile Rouge e menciono isso justamente para reforçar o que você falou, é um filme que eu baixei para ver no fim do ano passado, acabei não vendo em Dezembro e foi ficando perdido na pasta de filmes novos e acho que pesava mesmo isso de ser um filme rejeitado que não se via nenhum esforço de se recuperar.